sábado, 18 de abril de 2009

"Epistemologia em David Hume"


"Epistemologia Em David Hume"
por Robson Stigar
Publicado em:
http://www.artigonal.com/ciencia-artigos/epistemologia-em-david-hume-709667.html
04-01-2009
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DAVID HUME
Foi na cidade de Edimburgo no ano de 1711 na Escócia que nasceu David Hume. Por pertencer a aristocracia da época pode freqüentar o que era oferecido pelo melhor ensino da época. Estudos no famoso colégio de Edimburgo “ um dos melhores da Escócia”. No período que compreende sua passagem pelo famoso colégio teve como professor de ciências naturais e física um discípulo de Isaac Newton.Para tornar-se homem de letras e filósofo célebre, que era sua grande inspiração Hume rompe seus estudos jurídicos e comerciais, o que provoca problemas com a família. Já estudando Filosofia passa muito tempo na França, notadamente em La Flèche, onde compõe, aos vinte e três anos, seu Tratado da Natureza Humana, editado em Londres, em (1739).
Porém para decepção do auto a obra não obteve o sucesso ou melhor a acolhida desejada, em contrapartida seu trabalho intitulado Ensaios Morais e Políticos (1742) foram muito bem acolhidos pela imprensa da época. Por entender que parte do insucesso de sua primeira obra foi a linguagem empregada Hume passa a esforça-se para simplificar e vulgarizar a filosofia de seu tratado e publica então os Ensaios Filosóficos sobre o Entendimento Humano (1748), cujo título definitivo surgirá em edição seguinte (1758): Investigação (Inquiry) sobre o Entendimento Humano. Hume viu ainda seu desejo de tornar-se professor universitário recusado, pois muito cristãos não deixaram de ficar inquietos com a última obra citada, embora esta tenha alcançado grande sucesso.
David Hume fez uma grande carreira foi diplomata, secretário da Embaixada de Paris e ainda Secretário de Estado em Londres, com o passar do tempo tornou-se um celebre filósofos. Fato marcante e muito comentado foi a visita feita a Hume por Rosseau na Inglaterra no ano de (1766), fato peculiar foi a grande receptividade demonstrada por ambos e a grande indisposição que veio a seguir.Dentre suas obras constam. Uma Investigação sobre os Princípios Morais (1751), uma volumosa História da Inglaterra (1754-1759) e uma História Natural da Religião (1757). Somente após sua morte (1776) é que foram publicados, em (1779), seus Diálogos sobre a Religião Natural

O Ceticismo de Hume

O empirismo de Hume surge então como um ceticismo; seu propósito inicial era encontrar argumentos válidos, plausíveis para explicar psicologicamente a crença no princípio de causalidade é recusar todo valor a esse princípio.
De fato, não existe, na idéia de causalidade, senão o peso do meu hábito e da minha expectativa. Espero invencivelmente a ebulição da água que coloquei no fogo. Mas essa expectativa não tem fundamento racional. Em suma, poderia ocorrer - sem contradição - que essa água aquecida se transformasse em gelo! "Qualquer coisa, diz Hume, pode produzir qualquer coisa”[1].
Hume afirma ainda que o princípio de causalidade, inteiramente explicado por uma ilusão psicológica, não tem o menor valor de verdade.
Hegel considera o ceticismo de Hume absoluto.
Hegel esclarece seu ponto de vista ao esboçar que o ceticismo antigo duvidara “sobretudo dos sentidos para preparar a conversão do espírito ao mundo das verdades eternas, opõe-se um ceticismo moderno - de que Hume seria o corifeu - que nega apenas as afirmações da metafísica e fundamenta, solidamente, as verdades da ciência experimental. Na realidade, o ceticismo de Hume, ao abolir o princípio de causalidade, lança a suspeita em toda ciência experimental”[2]. Hegel prossegue afirmando que Hume tem seus méritos por em todos os princípios do conhecimento descobrir as ilusões da imaginação e do hábito. Segundo Hume, é também a imaginação que identifica o eu com o que ele possui ou, como dizemos, o ser e o ter. Em última instância, eu tenho reputação e mesmo lembranças, idéias e sonhos do mesmo modo que tenho esta roupa ou esta casa. É simplesmente a imaginação, hábil em mascarar a descontinuidade de todas as coisas, que facilmente desliza de um estado psíquico a outro e constrói o mito da personalidade, coleção de haveres heteróclitos que é dado como um ser. Pois, ou eu sou meus "estados" e minhas "qualidades" e não sou eu mesmo, ou então sou eu mesmo e nada mais. David Hume reconhece eu por mais absoluto que seja sua tese “ceticismo” não deixa de possuir um caracter artificial. Podemos terminar concluindo que conforme o empirismo, todas as nossas idéias são provenientes de nossas percepções sensoriais.


O Método de Hume

“Sua filosofia coloca, sob o nome de "impressões", aquilo que Bergson mais tarde denominará os dados imediatos da consciência e que os fenomenologistas denominarão a intuição originária ou o vivido. Ao falar de fenomenologia contemporânea, Gaton Berger escrevia: "É preciso ir dos conceitos vazios, pelos quais uma idéia é apenas visada, à intuição direta e concreta da idéia, exatamente como Hume nos ensina a retornar das idéias para as impressões". Para Hume, ir da idéia à impressão consiste em apenas perguntar qual é o conteúdo da consciência que se oculta sob as palavras. Fala-se de substância, de princípios, de causas e efeitos etc. Que existe verdadeiramente no pensamento quando se discorre sobre isso? As quais impressões vividas correspondem todas essas palavras? Aquilo que Hume chama de impressão e que ele caracteriza pelos termos "vividness", "liveliness" é o pensamento atual, vivo, que se precisa redescobrir sob as palavras no empirismo de Hume, diz Limongi, há que ver "antes o ódio ao verbalismo do que o preconceito do sensualismo. p22”.

As principais premissas do empirismo podem ser assim definidas:
- A razão não possui patrimônio apriorístico.
- A consciência cognoscente não retira seus conteúdos da razão, mas exclusivamente da experiência.
- A única fonte do conhecimento humano é a experiência.


BIBLIOGRAFIA
Lalande, André. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Mondin, Battista. Curso de Filosofia. 6 edição, V. 3.São Paulo: Paulus, 1983.
Mondin, Battista. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1980.
Ramos, César Augusto. Revista de Filosofia. Editora da Universidade Federal do Paraná, 2000.
Hume, David. Uma Investigação sobre os Princípios Morais. São Paulo: Martins Fontes,2000.
Limongi, Maria Isabel. Revista de Filosofia. Editora da Universidade Federal do Paraná, 2000.
Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. Editora ática. São Paulo,1999.
Volpe, Neusa, Anna Maria. Existencialismo: Uma reflexão antropologia e política a partir de Heidegger e Sartre. Editora Juruá. Curitiba, 2000.
Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Limongi, Maria Isabel. Revista de Filosofia UFPR-2000.
Ramos, César Augusto. Revista de Filosofia UFPR 1981.
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O Autor
Robson Stigar:

Licenciado em Ciências Religiosas; Licenciado em Filosofia; Bacharel em Teologia; Aperfeiçoamento em Sociologia Politica; Especialização em Filosofia; Especialização em História do Brasil; Especialização em Ensino Religioso; Especialização em Psicopedagogia; Especialização em Educação, Tecnologia e Sociedade; Especialização em Catequetica; MBA em Gestão Educacional; Mestrando em Ciências da Religião. Palavras Chave: Ciência da Religião; Ensino Religioso; Estética; Epistemologia; Ética; Fenomenologia; Filosofia da Religião; Fundamentalismo Religioso

terça-feira, 10 de março de 2009

“Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?”, por Thomas Kuhn

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KUHN, Thomas S.. “Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?” São Paulo (São Paulo): Editora Cultrix, tradução de Octávio Mendes Cajado, 1979 - Extraído das Atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência. Londres (Inglaterra): 1965. Trazido de: http://www.consciencia.org/logica-da-descoberta-ou-psicologia-da-pesquisa-thomas-kuhn
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"Meu objetivo nestas páginas é justapor o ponto de vista sobre o desenvolvimento científico esboçado em meu livro, The Structure of Scientific Revolutions (A Estrutura das Revoluções Científicas), aos pontos de vista mais conhecidos do nosso presidente, Sir Karl Popper.2 Normalmente eu me negaria a um empreendimento dessa natureza, pois sou menos otimista que Sir Karl quanto à utilidade das confrontações. Por outro lado, admirei por tanto tempo a sua obra que, a esta altura, não me é fácil criticá-la. Apesar disso, estou persuadido de que, nesta ocasião, a tentativa há que ser feita. Antes mesmo de meu livro ser publicado há dois anos e meio, eu começara a descobrir características especiais e freqüentemente enigmáticas da relação entre minhas opiniões e as dele. Essa relação e as reações divergentes por ela provocadas dão a entender que uma comparação disciplinada entre as duas pode elucidar muita coisa. Permitam-me dizer por que isso me parece possível.

Em quase todas as ocasiões em que nos voltamos explicitamente para os mesmos problemas, nossas opiniões sobre ciência são quase idênticas.3 Interessa-nos muito mais o processo dinâmico por meio do qual se adquire o conhecimento científico do que a estrutura lógica dos produtos da pesquisa científica. Em face desse interesse, ambos enfatizamos, como dados legítimos, os fatos e o espírito da vida científica real, e ambos nos voltamos com freqüência para a história no intuito de encontrá-los. Desse conjunto de dados partilhados, chegamos a muitas das mesmas conclusões. Ambos rejeitamos o parecer de que a ciência progride por acumulação; em lugar disso, enfatizamos o processo revolucionário pelo qual uma teoria mais antiga é rejeita­da e substituída por uma nova teoria, incompatível com a anterior; 4 e ambos sublinhamos enfaticamente o papel desempenhado nesse pro­cesso pelo fracasso ocasional da teoria mais antiga ao enfrentar desafios lançados pela lógica, experimentação ou observação. Final- mente, Sir Karl e eu estamos unidos na oposição a algumas das teses mais características do positivismo clássico. Ambos enfatizamos, por exemplo, o embricamento íntimo e inevitável da observação com a teoria científica; conseqüentemente, somos céticos quanto aos esforços para produzir qualquer linguagem observacional neutra; e ambos in­sistimos em que os cientistas podem, com toda propriedade, procurar inventar teorias que expliquem os fenômenos observados, e que façam isso em termos de objetos reais, seja qual for o significado da última expressão.

Conquanto não esgote as questões a cujo respeito Sir Karl e eu concordamos,3 essa lista já é suficientemente extensa para nos colocar no mesmo grupo minoritário entre os filósofos da ciência contemporâ­nea. Presumo que seja por isso que os seguidores de Sir Karl têm sido, com alguma regularidade, meu público filosófico mais compreen­sivo, ao qual continuo a sentir-me grato. Minha gratidão, contudo, não é sem reservas. A mesma concordância, que provoca a simpatia desse grupo, não raro lhe dirige mal o interesse. Ao que tudo indica, os adeptos de Sir Karl são capazes de ler grande parte do meu livro como capítulos de uma revisão tardia (e, para alguns, drástica) de sua obra clássica The Logic of Scientific Discovery (A Lógica da Descoberta Científica). Um deles pergunta se a visão da ciência es­boçada na minha Scientific Revolutions não constituiu por muito tempo matéria de conhecimento comum. Um segundo, mais caritati­vo, limita minha originalidade à demonstração de que as descobertas de fato têm um ciclo vital muito semelhante ao das inovações-da­teoria. Outros, ainda, declaravam-se satisfeitos de uma maneira geral com a leitura do livro, mas discutem apenas as duas questões, com­parativamente secundárias, a cujo respeito minha discordância com Sir Karl é mais explícita: a ênfase que dou à importância de um (compromisso profundo com a tradição e meu descontentamento com as implicações do termo “falseamento”. Resumindo, todos esses ho­mens leram meu livro com óculos muito especiais e há outra maneira de lê-lo. A visão que se tem através desses óculos não está errada — minha concordância com Sir Karl é real e substancial. Entretanto, os leitores fora do círculo properiano quase invariavelmente deixam de notar até que a concordância existe, e são eles que com mais fre­qüência reconhecem (nem sempre com simpatia) as questões que me parecem mais importantes. Chego à conclusão de que uma mudança de gestalt divide os leitores do meu livro em dois ou mais grupos. O que um deles vê como notável paralelismo é virtualmente invisível para outros. O desejo de compreender tudo isso é o que motiva a presente comparação da minha visão com a de Sir Karl.

Mikołaj Kopernik - Nicolaus Copernicus

A comparação, todavia, não deve limitar-se a uma justaposição ponto por ponto. O que exige atenção é menos a área periférica em que se devem isolar nossas divergências secundárias ocasionais, do que a região central em que parecemos concordar. Sir Karl e eu ape­lamos para os mesmos dados; vemos, numa extensão incomum, as mesmas linhas no mesmo papel; indagados sobre essas linhas e esses dados, damos, não raro, respostas virtualmente idênticas ou, pelo menos, respostas que inevitavelmente parecem idênticas na limitação imposta pelo processo de pergunta e resposta. Não obstante, experiên­cias como as que já mencionei convencem-me de que nossas intenções são muitas vezes totalmente diversas quando dizemos as mesmas coi­sas. Se bem as linhas sejam análogas, as figuras que delas emergem não o são. Por isso chamo ao que nos separa mudança de gestalt e não discordância e por isso me sinto, ao mesmo tempo, perplexo e intrigado sobre a melhor maneira de examinar a separação. Como poderei persuadir Sir Karl, que sabe tudo o que sei acerca do de­senvolvimento científico e que já o disse num ou noutro lugar, de que o que ele chama de pato pode ser visto como um coelho? Como poderei ensiná-lo a usar meus óculos quando ele já aprendeu a olhar através dos seus para tudo o que posso apontar?

Nesta situação, impõe-se uma mudança de estratégia, e a seguin­te se sugere. Relendo mais uma vez alguns dos principais livros e ensaios de Sir Karl, torno a encontrar uma série de expressões que se repetem e que, embora eu as compreenda e não as desaprove de todo, são expressões que nunca teria usado nos mesmos lugares. Sem dúvida, trata-se na maior parte das vezes, de metáforas retoricamente aplicadas a situações das quais Sir Karl forneceu alhures descrições inatacáveis. Contudo, para os propósitos correntes, tais metáforas — que se me afiguram manifestamente inadequadas — podem revelar-se mais úteis do que descrições diretas. Isto é, podem sintomatizar dife­renças contextuais que uma expressão literal cuidadosa esconde. A ser assim, tais expressões funcionam, não como linhas-sobre-o-papel, mas como a orelha-de-coelho, o xale ou a fita-na-garganta que se iso­la quando se está ensinando um amigo a transformar seu modo de ver um diagrama de gestalt. Essa, ao menos, é minha esperança no que a elas se refere. Tenho em mente quatro diferenças de expressões e delas tratarei seriatim.

I

Uma das questões fundamentais a cujo respeito Sir Karl e eu concordamos é a insistência em que uma análise do desenvolvimento do conhecimento científico deve levar em consideração a maneira pela qual a ciência é realmente praticada. Assim sendo, algumas das suas repetidas generalizações me surpreendem. Uma delas aparece no iní­cio do primeiro capítulo de A Lógica da Descoberta Científica: “Um cientista”, diz Sir Karl, “seja teórico, seja experimentador, apresenta enunciados, ou sistemas de enunciados, e os testa pouco a pouco. No campo das ciências empíricas, mais particularmente, ele constrói hipóteses, ou sistemas de teorias, e os põe à prova à luz da experiência, pela observação e pela experimentação”.6 O enunciado é virtualmente um clichê e, no entanto, apresenta três problemas em sua aplicação. É ambíguo porque não especifica qual das duas espécies de “enunciados” ou “teorias” está sendo testada. Não há dúvida de que essa ambigüidade pode ser eliminada por referência a outras passagens dos escritos de Sir Karl, mas a generalização que dela resulta é historicamente equivocada. De mais a mais, o equívoco revela-se importante, pois a forma não ambígua da descrição omite exatamente a característica da prática científica que, de certo modo, distingue as ciências de outras atividades criativas.

Giambattista Vico

Há uma espécie de “enunciado” ou “hipótese” que os cientistas submetem repetidamente ao teste sistemático. Tenho em mente os enunciados das conjeturas de um indivíduo acerca da maneira apropriada de ligar seu problema de pesquisa ao corpo do conhecimento científico aceito. Ele pode conjeturar, por exemplo, que determinada incógnita química contém o sal de uma terra rara, que a obesidade dos seus ratos experimentais se deve a um componente específico da dieta deles, ou que um modelo espectral recém-descoberto deve ser compreendido como um efeito do spin nuclear. Em cada caso, os passos seguintes de sua pesquisa se destinarão a testar a conjetura ou hipótese. Se esta passar por uma quantidade suficiente ou suficientemente persuasiva de testes, o cientista fez uma descoberta ou, pelo menos, resolveu o enigma em cuja solução estava empenhado. Caso contrário, terá de abandonar inteiramente o enigma ou tentar resolvê- lo com o auxílio de outra hipótese qualquer. Embora nem todos, muitos problemas de pesquisa assumem essa forma. Os testes desse tipo representam um componente comum do que denominei “ciência normal” ou “pesquisa normal”, responsável pela imensa maioria do trabalho realizado em ciência básica. Esses testes, porém não são dirigidos, em nenhum sentido usual, para a teoria corrente. Ao contrário, quando está às voltas com um problema de pesquisa normal, o cientista deve postular a teoria corrente como a regra do seu jogo. Seu objetivo é resolver uma charada, de preferência uma charada em que outros falharam, e a teoria corrente é indispensável para defini-la e para assegurar que, em havendo talento suficiente, a charada poderá ser resolvida.’ É evidente que quem se propõe a um tal empreendimento precisa testar com freqüência a solução conjetural do enigma que seu engenho lhe sugere. Mas só é testada a sua conjetura pessoal. Se ela não passar pelo teste, só se impugna a capacidade do cientista e não o corpo da ciência corrente. Em suma, conquanto ocorram com freqüência na ciência normal, esses testes são de um gênero peculiar pois na análise final, é o cientista e não a teoria vigente que se põe) à prova.

Não é essa, todavia, a espécie de teste que Sir Karl tem em men­te. Interessam-no, acima de tudo, os processos por cujo intermédio a ciência se desenvolve, e ele está convencido de que o “desenvolvi­mento” não ocorre principalmente por acumulação mas pela derru­bada revolucionária da teoria aceita e pela substituição por uma teo­ria melhor.8 (Considerar que “crescimento” inclui “derrubada repe­tida” é uma singularidade lingüística cuja raison d’être poderá tor­nar-se visível à medida que prosseguirmos.) Segundo este ponto de vis­ta, os testes enfatizados por Sir Karl são os que se realizam para ex­plorar as limitações da teoria aceita ou para submeter a teoria vigente a urna tensão máxima. Entre seus exemplos favoritos, todos de re­sultados surpreendentes e destrutivos, estão as experiências de Lavoisier sobre oxidação, a expedição de 1919 para estudar o eclipse e as recentes experiências sobre a conservação da paridade.9 Trata-se, na­turalmente, de testes clássicos mas, ao utilizá-los para caracterizar a atividade científica, Sir Karl passa por alto um pormenor importan­tíssimo a respeito deles. Tais episódios são muito raros no desenvol­vimento da ciência. Sobrevêm, quase sempre, provocados por uma crise anterior no campo pertinente (as experiências de Lavoisier ou as de Lee e Yang 10) ou pela existência de uma teoria que compete com os cânones existentes da pesquisa (relatividade geral de Einstein). Estes são, todavia, aspectos do que em outro lugar chamei de “pesquisa extraordinária” ou ocasiões para ela, atividade em que os cientistas exibem muitas das características enfatizadas por Sir Karl, mas que, pelo menos no passado, só surgiram com intermitências e em circunstâncias muito especiais em qualquer especialidade científica.11

Isaac Newton

A meu ver, portanto, Sir Karl caracterizou toda a atividade cien­tífica em termos que só se aplicam a suas partes revolucionárias oca­sionais. Sua ênfase é natural e comum; os feitos de um Copérnico ou de um Einstein constituem leitura mais aprazível que os de um Brahe ou de um Lorentz; Sir Karl não seria o primeiro se tomasse o que chamo de ciência normal por uma atividade intrinsecamente desinteressante. Apesar isso, nem a ciência nem o desenvolvimento do conhecimento têm probabilidades de ser compreendidos se a pes­quisa foi vista apenas através das revoluções que produz de vez em quando. Por exemplo, embora os compromissos básicos só sejam testados na ciência extraordinária, é a ciência normal que revela, ao mesmo tempo, os pontos que devem ser testados e a maneira de testá- los. Ou ainda, é para a prática normal, e não para a prática extraor­dinária da ciência, que se treinam profissionais; se eles, entretanto, forem muitíssimo bem-sucedidos nas substituições das teorias de que depende a prática normal, esta singularidade terá de ser explicada. Finalmente, e tal é por enquanto o meu ponto principal, um olhar cuidadoso dirigido à atividade científica dá a entender que é a ciência normal, onde não ocorre os tipos de testes de Sir Karl, e não a ciência extraordinária que quase sempre distingue a ciência de outras ativida­des. A existir um critério de demarcação (entendo que não devemos procurar um critério nítido nem decisivo), só pode estar na parte da ciência que Sir Karl ignora.

Num de seus ensaios mais sugestivos, Sir Karl remonta a origem “da tradição da discussão crítica [que] representa o único modo praticável de expandir nosso conhecimento” até os filósofos gregos entre Tales e Platão, homens que, no seu entender, fomentaram a discussão crítica não só entre as escolas mas também dentro delas.12 A descrição do discurso pré-socrático é muito bem feita, mas o que se descreve em nada se parece com ciência. É antes a tradição de razões, contra-razões e debates sobre questões fundamentais que, ex­ceto talvez durante a Idade Média, caracterizassem a filosofia e boa parte da ciência social desde então. Já por volta do período helenís­tico a matemática, a astronomia, a estática e as partes geométricas da ótica haviam abandonado esse tipo de discurso em favor da solução de enigmas. Outras ciências, em quantidades cada vez maiores, so­freram depois disso a mesma transição. Em certo sentido, para virar do avesso o ponto de vista de Sir Karl, é precisamente o abandono do discurso crítico que assinala a transição para uma ciência. Depois que um campo opera essa transição, o discurso crítico só se repete em momentos de crise, quando estão em jogo as bases desse campo.13 Apenas quando precisam escolher entre teorias concorrentes os cien­tistas se comportam como filósofos. É por isso provavelmente que a brilhante descrição de Sir Karl das razões da escolha entre sistemas metafísicos se parece tanto com minha descrição das razões da esco­lha entre teorias científicas.14 Em nenhuma das escolhas, como logo tentarei demonstrar, o sistema dos testes desempenha papel decisivo.

Há, contudo, uma boa razão para que o teste pareça desempenhar esse papel e, ao estudá-lo, o pato de Sir Karl pode, afinal, conver­ter-se no meu coelho. Não existirá nenhuma atividade de solução de enigmas se os seus praticantes não partilharem de critérios que, para aquele grupo e aquele momento, determinam o instante em que certo enigma é solucionado. Os mesmos critérios determinam necessaria­mente o fracasso na obtenção de uma solução, e quem quer que escolha, pode ver esse fracasso como o fracasso de uma teoria em passar por um teste. Normalmente, porém, como já tenho dito, não se vê dessa maneira. Só se censura o praticante, não se lhe censuram os instrumentos. Mas em condições especiais, que provocam uma crise na profissão (como, por exemplo, um grande malogro, ou o malogro repetido dos profissionais mais brilhantes) a opinião do grupo pode mudar. Um fracasso visto antes como pessoal parece então o fracas­so da teoria que está sendo testada. Dali por diante, por ter nascido de um enigma e ter critérios determinados de solução, o teste se revela, ao mesmo tempo, mais severo e mais difícil de eludir do que os que se encontram dentro de uma tradição cujo processo normal é muito mais o discurso crítico do que a solução de enigmas.

Num sentido, portanto, a severidade dos critérios-de-teste é tão­-só um lado da moeda cujo verso é a tradição de solução-de-enigmas. Daí que a linha de demarcação de Sir Karl e a minha coincidam com tanta freqüência. A coincidência, contudo, está apenas no resultado delas; o processo de aplicá-las, muito diferente, isola aspectos distin­tos da atividade a cujo respeito deverá ser tomada a decisão — ciên­cia ou não-ciência. Examinando, por exemplo, os casos mais debati­dos, a psicanálise ou a historiografia marxista, para os quais, no dizer de Sir Karl, seu critério foi inicialmente destinado,15 concordo em que eles não podem ser apropriadamente qualificados de “ciência”. Mas chego a essa conclusão por um caminho muito mais seguro e direto do que o dele. Um breve exemplo talvez mostre que, dos dois critérios, o dos testes e o da solução de enigmas, este último é o me­nos equívoco e o mais fundamental.

A fim de evitar controvérsias contemporâneas sem importância, prefiro focalizar a astrologia a focalizar, digamos, a psicanálise. A as­trologia é o exemplo mais freqüentemente citado por Sir Karl de uma “pseudociência”.16 Diz ele: “Fazendo suas interpretações e profecias suficientemente vagas, eles [os astrólogos] conseguiram explicar de modo plausível tudo o que poderia ter sido uma refutação da teoria se a teoria e as profecias tivessem sido mais precisas. No intuito de escapar ao falseamento eles destruíram a testabilidade da teoria”.17 Tais generalizações captam algo do espírito da atividade astrológica. Tomadas, no entanto, literalmente, como o terão de ser para fornecer um critério de demarcação, são insustentáveis. A história da astro­logia durante os séculos em que foi intelectualmente respeitável regis­tra inúmeros vaticínios que falharam de forma categórica.18 Nem mesmo os expoentes mais convencidos e veementes da astrologia duvi­davam da repetição desses malogros. A astrologia não pode ser ex­cluída das ciências pela forma com que eram feitos seus prognósticos.

Tampouco pode ser excluída em virtude do modo com que seus praticantes explicavam o malogro. Assinalavam os astrólogos, por exemplo, que, quanto à diferença das predições gerais acerca das propensões de um indivíduo ou de uma calamidade natural, o prenúncio do futuro de um indivíduo era uma tarefa imensamente complexa, que exigia a máxima habilidade e extrema sensibilidade aos menores erros em dados importantes. A configuração das estrelas e dos oito planetas mudava constantemente; as tabelas astronômicas utilizadas para computar a configuração por ocasião do nascimento de um indivíduo não primavam pela perfeição; poucos homens conheciam o instante do seu nascimento com a indispensável precisão.19 Não era de se admirar, portanto, que as previsões falhassem com freqüência. Só depois que a própria astrologia se tornou implausível começaram esses argumen­tos a dar impressão de que consideravam certo precisamente o que estava em questão.” Hoje se empregam amiúde argumentos semelhan­tes para explicar, por exemplo, malogros na medicina ou na meteoro­logia. Em ocasiões de dificuldades eles também são apresentados pelas ciências exatas, em campos como a física, a química e a astro­nomia.21 Não havia nada de não-científico na explicação do fracasso dada pelo astrólogo.

Não obstante, a astrologia não era uma ciência. Ao invés disso, era um ofício, uma das artes práticas, que apresentava íntimas seme­lhanças com a engenharia, a meteorologia e a medicina, pela maneira com que se exercitavam há pouco mais de um século. Os paralelos com uma medicina mais antiga e com a psicanálise contemporânea são, a meu ver, particularmente rigorosos. Em cada um desses campos a teoria partilhada só era adequada para estabelecer a plausibilidade da disciplina e fornecer uma base-racional às várias regras-de-ofício que governavam a prática. Tais regras tinham demonstrado sua uti­lidade no passado, mas nenhum profissional as supunha suficientes para impedir a repetição do fracasso. Faziam-se mister uma teoria mais inteligível e regras mais poderosas, mas teria sido absurdo aban­donar uma disciplina plausível e muito necessária, com uma tradição de êxito limitado, só porque ainda não se haviam alcançado tais desi­deratos. Na ausência deles, no entanto, nem o astrólogo nem o médico poderiam fazer pesquisas. Conquanto tivessem regras para aplicar, não tinham enigmas para resolver e, portanto, não tinham ciência para praticar.22

Comparem-se as situações do astrônomo e do astrólogo. Se a pre­dição de um astrônomo falhasse e seus cálculos conferissem, ele po­deria esperar corrigir a situação. Os dados podiam estar errados: velhas observações podiam ser reexaminadas e novas mensurações feitas, tarefas que criavam uma quantidade de quebra-cabeças de cálculo e instrumentação. Ou talvez a teoria necessitasse de ajusta­mento, quer pela manipulação de epiciclos, excêntricos, equantes, etc., quer por reformas mais fundamentais de técnica astronômica. Por mais de um milênio tais foram os enigmas teóricos e matemáticos em torno dos quais, juntamente com suas contrapartidas instrumentais, se constituiu a tradição da pesquisa astronômica. O astrólogo, em compensação, não tinha esses quebra-cabeças. A ocorrência de fra­cassos poderia ser explicada, mas os fracassos particulares não deram origem a enigmas de pesquisa, pois nenhum homem, por mais habili­tado que fosse, poderia utilizá-las na tentativa construtiva de revisar a dificuldade, em sua maioria fora do conhecimento, do controle ou da responsabilidade do astrólogo. Os fracassos individuais eram cor­respondentemente não-informativos, e não se refletiam na compe­tência do prognosticador aos olhos de seus colegas profissionais.”.

Embora a astronomia e a astrologia fossem quase sempre praticadas pelas mesmas pessoas, incluindo Ptolomeu, Kleper e Tycho Brahe, nunca existiu um equivalente astrológico da tradição astronômica de solução de charadas. E sem charadas, que pudessem primeiro desa­fiar e depois atestar o engenho do profissional, a astrologia não po­deria ter-se tornado ciência, ainda que as estrelas controlassem, de fato, o destino humano.

Em suma, conquanto os astrólogos fizessem predições que po­deriam ser testadas e reconhecessem que essas predições às vezes falhavam, não podiam empenhar-se, e não se empenhavam, nos tipos de atividades que normalmente caracterizam todas as ciências reco­nhecidas. Sir Karl está certo ao excluir a astrologia do rol das ciên­cias, mas sua superconcentração nas revoluções ocasionais da ciência o impede de ver a razão mais segura para fazê-lo.

Esse fato, por seu turno, pode explicar outra singularidade da historiografia de Sir Karl. Embora sublinhe repetidamente o papel dos testes na substituição de teorias científicas, vê-se também obrigado a reconhecer que muitas teorias, como por exemplo a de Ptolomeu, fo­ram substituídas antes de terem sido realmente testadas.24 Em algu­mas ocasiões, pelo menos, os testes não são imprescindíveis às revo­luções através das quais progride a ciência. Mas isso não é verdade em relação aos enigmas. Se bem que as teorias citadas por Sir Karl -não tenham sido postas à prova antes da sua substituição, nenhuma delas foi substituída antes de haver deixado de sustentar conveniente­mente uma tradição de solução-de-enigmas. O estado da astronomia era um escândalo no início do século XVI. Não obstante, a maioria dos astrônomos acreditava que os ajustamentos normais de um mo­delo basicamente ptolemaico corrigiriam a situação. Nesse sentido a teoria não falhou ao ser testada. Mas alguns astrônomos, entre os quais Copérnico, entendiam que as dificuldades deviam estar no pró­prio enfoque ptolemaico e não nas versões particulares da teoria pto­lemaica até então desenvolvidas, e os resultados dessa convicção já foram registrados. A situação é típica.25 Com ou sem testes, uma tra­dição de solução-de-enigmas pode preparar o caminho para a pró­pria substituição. Confiar no teste como marca de uma ciência é passar por alto o que os cientistas mais fazem e, com isso, o traço mais característico da sua atividade.

Nicholas Steno

II

Com o pano de fundo fornecido pelos reparos precedentes pode­mos descobrir logo a ocasião e as conseqüências de outra expressão favorita de Sir Karl. O prefácio escrito para Conjectures and Refuta­tions (Conjecturas e Refutações) inicia-se com esta sentença: “Os ensaios e conferências de que se compõe este livro são variações sobre um tema muito simples — a tese segundo a qual podemos aprender com nossos erros.” O grifo é de Sir Karl; a mesma tese repete-se em seus escritos desde uma data bem anterior; 26 tomada isoladamente, ela obriga inevitavelmente ao assentimento. Todos podemos aprender, e aprendemos, com nossos erros; o processo de isolá-los e corrigi-los é uma técnica essencial no ensino das crianças. A retórica de Sir Karl tem raízes na experiência cotidiana. Apesar disso, nos contextos para os quais ele invoca esse imperativo familiar, suas aplicações pa­recem decididamente torcidas, pois não estou certo de que tenha sido cometido um erro, pelo menos um erro, com o qual se possa aprender.

Não há necessidade de confrontar os problemas filosóficos mais profundos apresentados pelos erros para ver o que está agora em debate. É um erro somar três mais três e obter cinco, ou concluir de Todos os homens são mortais” que “Todos os mortais são ho­mens”. Por motivos diferentes, é um erro dizer “Ele é minha irmã” ou afirmar a presença de um campo elétrico forte quando as cargas experimentais não a indicam. Presume-se que haja ainda outras espé­cies de erros mas todos os erros normais tendem a possuir as seguintes características. Um erro é feito, ou cometido, num tempo e num lugar especificáveis, por determinado indivíduo. Esse indivíduo deixou de: obedecer a alguma regra estabelecida de lógica, de linguagem, ou das relações entre uma delas e a experiência. Ou deixou de reconhecer as conseqüências de determinada escolha entre as alternativas que as regras lhe facultam. O indivíduo só pode aprender com o seu erro porque o grupo cuja prática incorpora essas regras pode limitar o fracasso individual na aplicação delas. Em suma, as espécies de erros a que se aplica o imperativo de Sir Karl de modo mais óbvio estão numa falha de compreensão ou deconhecimento do indivíduo dentro de uma atividade governada por regras preestabelecidas. Nas ciências, tais erros ocorrem com maior freqüência, e talvez de forma ex­clusiva, na prática da pesquisa normal de solução-de-enigmas.

Não é aí, todavia, que Sir Karl os procura, pois o seu conceito de ciência obscurece até a existência da pesquisa normal. Ele os procura nos episódios extraordinários ou revolucionários do desenvol­vimento científico. Os erros para os quais aponta geralmente não são atos, senão teorias científicas do passado: a astronomia ptolemai­ca, a teoria do flogisto ou a dinâmica newtoniana, e “aprender com nossos erros” é o que acontece, correspondentemente, quando uma comunidade científica rejeita uma dessas teorias e a substitui por outra.27 Se isto não não parece de imediato uma utilização estranha, a razão principal é porque apela para o resíduo indutivista que existe em todos nós. Acreditando que as teorias válidas são o produto de induções corretas a partir dos fatos, o indutivista também sustenta que uma teoria falsa resulta de um erro de indução. Em princípio, pelo menos, ele está preparado para responder a perguntas: que erro se perpetrou, que regra foi violada, quando e por quem, para se chegar, digamos, ao sistema ptolemaico? Ao homem para o qual essas per­guntas são sensatas, e só a ele, a expressão de Sir Karl não apresenta problemas.

Mas nem Sir Karl nem eu somos indutivistas. Não acreditamos que existem regras para induzir teorias corretas a partir dos fatos, nem mesmo que as teorias, corretas ou incorretas, são induzidas. Ao invés disso, nós as encaramos como suposições imaginativas, que se inventam em um só bloco para serem aplicadas à natureza. E se bem assinalemos que essas suposições podem encontrar, e geralmente acabam encontrando enigmas que não lhes é dado resolver, também reconhecemos que tais confrontações incômodas raro ocorrem durante algum tempo depois de inventada e aceita a teoria. Em nossa opinião, portanto, não se perpetrou nenhum erro para chegar ao sistema ptolemaico, e acho difícil compreender o que Sir Karl tem em mente quando chama de erro esse sistema, ou qualquer outra teoria superada. Poder-se-á querer dizer no máximo que uma teoria que não era um erro passou a sê-lo ou que um cientista errou ao aferrar-se a uma teoria por um tempo demasiado longo. E nem mesmo tais expressões, a primeira das quais pelo menos é extremamente inábil, nos devolve o sentido de erro com o qual estamos mais familiarizados. Esses erros são os erros normais que um astrônomo ptolemaico (ou coperniciano) faz dentro do seu sistema, talvez observando, calculando ou analisando dados. Isto é, pertencem ao tipo de erros que se podem isolar e logo depois corrigir, deixando intacto o sistema original. No sentido de Sir Karl, por outro lado, um erro contamina todo um sistema e só pode ser corrigido substituindo-se todo o sistema. Não há expressões nem similaridades capazes de disfarçar essas diferenças fundamentais, nem se pode esconder o fato de que, antes de instalar-se a contaminação, o sistema tinha a plena integridade do que ora denominamos conhecimento sólido.

É muito possível que o sentido de “erro” de Sir Karl possa ser recuperado, mas uma operação bem-sucedida de recuperação terá de privá-lo de certas implicações ainda correntes. Como o termo “teste”, o termo “erro” foi tomado da ciência normal, onde o seu uso é razoavelmente claro, e aplicado a episódios revolucionários, onde sua aplicação, na melhor das hipóteses, é problemática. Essa transferência cria, ou pelo menos reforça, a impressão predominante de que teorias inteiras podem ser julgadas pela mesma espécie de critérios que se empregam para julgar as aplicações de pesquisa individual de uma teoria. A descoberta de critérios aplicáveis torna-se, então, um desiderato fundamental para muitos. É estranho que Sir Karl se encontre entre eles, pois a pesquisa se opõe à mais original e frutuosa investida de sua filosofia da ciência. Mas não posso compreender de outra maneira seus escritos metodológicos desde a Logik der Forschung. Parece-me que ele, a despeito de repúdios explícitos, procurou sistematicamente processos de avaliação que se podem aplicar a teorias com a segurança apodítica s técnicas pelas quais se identificam os erros na aritmética, lógica ou mensuração. Receio que ele esteja perseguindo um fogo-fátuo nascido da mesma conjunção de característica das ciência normal e ciência extraordinária que fez que os testes pareces­sem um traço tão fundamental das ciências.

III

Em sua Logik der Forschung, Sir Karl sublinhou a assimetria entre uma generalização e sim negação na relação delas com a evidên­cia empírica. Não se pode mostrar que uma teoria científica se aplica de maneira bem-sucedida a todos os casos possíveis, mas pode mos­trar-se que ela foi malsucedida em determinadas aplicações. A ênfase emprestada a esse truísmo lógico e às suas implicações afigura-se um passo à frente do qual não há que voltar atrás. A mesma assimetria desempenha um papel fundamental em minha Structure of Scientific Revolutions, onde a incapacidade de uma teoria de fornecer regras para identificar quebra-cabeças solúveis é encarada como a origem de crises profissionais que não raro resultam na substituição da teo­ria. Minha idéia está muito próxima da de Sir Karl, e bem posso tê-la tirado do que ouvi sobre a obra dele.

Mas Sir Karl descreve como “falseamento” ou “refutação” o que acontece quando uma teoria falha na tentativa de aplicação, e estas e são as primeiras de uma série de expressões que me parecem sumamente estranhas. Tanto “falseamento” quanto “refutação”, antônimos de “prova”, são tiradas principalmente da lógica e da matemática formais; as cadeias de raciocínio a que elas se aplicam rematam-se com um “0 . E .D.”; a invocação desses termos supõe a capacidade de obrigar ao assentimento qualquer membro da comunidade profissio­nal pertinente. Ninguém entre os aqui presentes, no entanto, precisa ainda que se lhe diga que os argumentos raros são tão apodíticos nos casos em que está em jogo toda uma teoria ou, com maior freqüên­cia, até uma lei científica. Todas as experiências podem ser contesta­das, quer quanto à relevância, quer quanto à exatidão. Todas as teo­rias podem ser modificadas por uma variedade de ajustamentos ad hoc sem por isso deixar de ser, em suas linhas gerais, as mesmas teo­rias. De mais a mais, é importante que assim seja, pois é amiúde con­testando observações ou ajustando teorias que se desenvolve o conhe­cimento científico.

Contestações e ajustamentos são uma parte comum da pesquisa normal na ciência empírica, e os ajustamentos, pelo menos, representam também um papel dominante na matemática não-formal. A brilhante análise das contra-réplicas permissíveis às refutações matemáticas levadas a argumentos mais impressionantes que conheço contra a posição fal­seacionista ingênua.28

Sir Karl não é, obviamente, um falseacionista ingênuo. Sabe tudo o que acaba de ser dito e enfatizou-o desde o princípio da sua carreira. Em sua Logic of Scientific Discovery (A Lógica da Desco­berta Científica), por exemplo, escreve: “Na verdade, nunca se po­derá produzir a refutação concludente de uma teoria; pois é sempre possível dizer que os resultados experimentais não merecem confiança ou que as discrepâncias que se afirmam existir entre os resultados ex­perimentais e a teoria são apenas aparentes e desaparecerão com o processo de nosso entendimento.” 29 Enunciados como esse mostram mais um paralelo entre a visão da ciência de Sir Karl e a minha, mas o que fazemos com eles dificilmente poderia ser mais diferente. Para a minha visão eles são fundamentais, não só como evidência mas também como fonte. Para a visão de Sir Karl, no entanto, são uma qualificação essencial que ameaça a integridade da sua posição básica. Tendo excluído a refutação, concludente, ele não providenciou um substituto para ela, e a relação que continua a empregar é a do fal­seamento lógico. Conquanto não seja um falseacionista ingênuo Sir Karl, no meu entender, pode ser legitimamente tratado como tal.

Se ele só se interessasse pela demarcação, os problemas coloca­dos pela falta de disponibilidade de refutações concludentes seriam menos severos e talvez elimináveis. Isto é, a demarcação poderia con­seguir-se mediante um critério exclusivamente sintático.” A posição de Sir Karl seria então, e talvez assim o seja, que uma teoria é cien­tífica se e somente se os enunciados de observação — sobretudo as negações de enunciados existenciais singulares — puderem ser logi­camente deduzidos dela, talvez em conjunção com o conhecimento básico expresso. As dificuldades (às quais logo voltarei) para decidir se o resultado de determinada operação de laboratório justifica a asserção de determinado enunciado de observação seriam então ir­relevantes. Talvez se pudessem eliminar da mesma maneira as dificuldades igualmente graves para decidir se um enunciado de observação deduzido de uma versão aproximada (por exemplo, matematicamente controlável) da teoria deva ser considerado conseqüência da própria teoria, embora a base para fazê-lo seja menos aparente. Problemas como esses não pertenceriam à sintaxe, mas à pragmática ou à se­mântica da linguagem em que a teoria foi moldada, e não desempe­nhariam, portanto, papel algum na determinação do seu status como ciência. Para ser científica, a teoria precisa ser falseável apenas por um enunciado de observação e não pela observação real. A relação entre enunciados, à diferença da que existe entre um enunciado e uma observação, poderia ser a refutação concludente familiar da lógica e da matemática.

Por motivos sugeridos acima (p. 15, nota de rodapé n.° 22) e desenvolvidos logo depois, duvido que as teorias científicas possam ser moldadas, sem uma mudança decisiva, numa forma que permita os julgamentos puramente sintáticos exigidos por essa versão do cri­tério de Sir Karl. Mas ainda que o pudessem ser, essas teorias recons­truídas só proporcionariam uma base para o seu critério de demarca­ção, e não para a lógica do conhecimento tão intimamente associada a ele. Esta última, entretanto, tem constituído o interesse mais per­sistente de Sir Karl, e a noção que ele tem dela é bem precisa. “A lógica do conhecimento … ” escreve ele, “consiste tão-só em investigar os métodos empregados nos testes sistemáticos a que toda idéia nova tem de ser submetida para ser tomada seriamente em consideração.” 31 Dessa investigação, continua ele, resultam regras ou convenções me­todológicas como as seguintes: “Depois que uma hipótese tiver sido proposta e testada, e tiver demonstrado sua têmpera, não se deve permitir que seja posta de lado sem uma ‘boa razão’. Uma ‘boa razão’ pode ser, por exemplo . . . o falseamento de uma das suas conseqüências.” 32

Regras como essa e, com elas, toda a atividade lógica acima descrita, já não são simplesmente sintáticas em sua importância. Re­querem que tanto o investigador epistemológico quanto o cientista pesquisador sejam capazes de relacionar sentenças derivadas de uma teoria não com outras sentenças mas com observações e experiências reais. Esse é o contexto em que precisa funcionar o termo “falsea­mento” de Sir Karl, e Sir Karl mantém absoluto silêncio sobre como isso pode ser feito. Que é o falseamento se não é a refutação conclu dente? Em que circunstâncias exige a lógica do conhecimento que o cientista abandone uma teoria previamente aceita quando se defronta, não com enunciados sobre experiências, mas com as próprias expe­riências? Até a elucidação dessas questões, não me parece muito claro que o que Sir Karl nos deu seja uma lógica do conhecimento. A meu ver, embora igualmente valiosa, trata-se de coisa muitíssimo di­versa. Em lugar de uma lógica, Sir Karl nos ofereceu uma ideologia; em lugar de regras metodológicas, ele nos deu máximas de proce­dimento.

Cumpre, todavia, adiar essa conclusão até que se lance um der­radeiro e mais profundo olhar à origem das dificuldades surgidas com a noção de falseamento de Sir Karl. Ela pressupõe, como já sugeri, que se pode moldar ou remoldar, sem distorção, uma teoria numa forma que permite aos cientistas classificar cada evento concebível como um caso que confirma a teoria, como um caso que a falseia ou como um caso que é irrelevante para a teoria. Para que uma lei geral seja falseável requer-se obviamente que, a fim de testar a generaliza­ção (x) 0 (x) aplicando-a à constante a, sejamos capazes de dizer se a se encontra ou não dentro do âmbito da variável x e se é o caso de que 0 (a) ou não. A mesma pressuposição é ainda mais aparente na medida de verossimilhança recém-elaborada por Sir Karl. Ela re­quer que se produza primeiro a classe de todas as conseqüências lógicas da teoria e depois se escolham entre essas conseqüências, com a ajuda do conhecimento básico, as classes de todas as conseqüências verdadeiras e de todas as falsas.33 Pelo menos será preciso fazê-lo se o critério de verossimilhança tiver de resultar num método de escolha de teorias. Entretanto, nenhuma dessas tarefas pode ser levada a cabo se a teoria não for totalmente articulada logicamente e se os termos através dos quais ela se liga à natureza não tiverem sido suficiente­mente definidos para determinar-lhes a aplicabilidade em cada caso possível. Na prática, todavia, nenhuma teoria científica satisfaz a essas exigências, e muita gente já sustentou que, se o fizesse, a teoria deixa­ria de ser útil à pesquisa.34 Eu mesmo apresentei alhures o termo “paradigma” com o propósito de destacar a dependência da pesquisa Científica para com exemplos concretos, que lançam uma ponte sobre o que de outro modo seriam lacunas na especificação do conteúdo e na aplicação das teorias científicas. Não se podem repetir aqui os argumentos pertinentes. Mas um breve exemplo, embora altere tempo­rariamente minha linha de discurso, talvez seja ainda mais útil.

Meu exemplo tem a forma de um resumo construído a partir de conhecimentos científicos elementares. Esse conhecimento refere-se aos cisnes e para isolar-lhe as características atualmente pertinentes farei três perguntas a respeito: (a) Quanto se pode saber a respeito de cisnes sem introduzir generalizações explícitas como esta: “Todos os cisnes são brancos?” (b) Em que circunstâncias e com que con­seqüências convém acrescentar tais generalizações ao que era sabido sem elas? (c) Em que circunstâncias se rejeitam as generalizações depois de feitas? Ao formular essas perguntas meu objetivo é sugerir que, embora a lógica seja um instrumento poderoso e essencial da investigação científica, é possível ter um conhecimento sólido em for­mas a que escassamente se pode aplicar a lógica. Sugiro outrossim que a articulação lógica não é um valor em si mesma, mas só deve ser buscada quando as circunstâncias a exigem e na medida em que a exigem.

Imagine, o leitor, que lhe foram mostrados, e você pode lembrar- se deles, dez pássaros peremptoriamente identificados como cisnes; imagine ainda que possui uma familiaridade semelhante com patos, gansos, pombos, rolinhas, gaivotas, etc., e que está informada de que cada um desses tipos constitui uma família natural. Você já sabe que uma família natural é um grupo observado de objetos seme­lhantes, suficientemente importantes e suficientemente discretos para exigir um nome genérico. Com maior precisão, embora eu aqui sim­plifique mais do que o requer o conceito, uma família natural é uma classe cujos membros são mais parecidos uns com os outros do que com os membros de outras famílias naturais.35 A experiência das ge­rações tem confirmado até agora que todos os objetos observados cabem numa ou noutra família natural. Isto é, mostrou que toda a população do mundo pode ser dividida (embora não de uma vez por todas) em categorias perceptivamente descontínuas. Acredita-se que nos espaços perceptivos entre as categorias não existe objeto algum.

O que você aprendeu a respeito de cisnes pela exposição a paradigmas é muito parecido com o que as crianças aprendem pri­meiro acerca de cães e gatos, mesas e cadeiras, mães e pais. Claro está que é impossível especificar-lhes o âmbito e o conteúdo especí­fico mas, apesar de tudo, é conhecimento sólido. Derivado da obser­vação, pode ser invalidado por uma observação ulterior e, entremen­tes, proporciona uma base de ação racional. Ao ver um pássaro muito parecido com os cisnes que já conhece, você poderá com razão supor que ele come o que comem os outros e dar-lhe o mesmo alimento. Se os cisnes constituem uma família natural, nenhum pássaro que se pareça muito com eles à primeira vista exibirá características radi­calmente diferentes a um exame mais atento. É claro que você talvez tenha sido mal informado acerca da integridade natural da família dos cisnes. Mas isso pode ser descoberto pela experiência, como por exemplo a descoberta de certo número de animais (observe-se que mais de um são necessários) cujas características estabeleçam urna ponte entre os cisnes e, digamos, os gansos por intervalos vagamente perceptíveis.36 Até que isso ocorra, entretanto, você saberá muita coi­sa a respeito de cisnes, embora não esteja plenamente seguro do que sabe nem tem certeza do que é um cisne.

Gregor Mendel

Suponha agora que todos os cisnes que você realmente observou são’ brancos. Deverá adotar a generalização “Todos os cisnes são brancos”? O fazê-lo mudará muito pouco o que você sabe; essa mu­dança só terá utilidade no caso pouco provável de você encontrar um pássaro não-branco que sob outros aspectos se pareça com um cisne; fazendo a mudança você aumenta o risco de que se prove que a família dos cisnes não é, apesar de tudo, uma família natural. Nessas circunstâncias você tenderá a abster-se de generalizar, a me­nos que haja razões especiais para fazê-lo. Talvez, por exemplo, você precise descrever cisnes a homens que não se podem expor di­retamente a paradigmas. Sem uma cautela sobre-humana, tanto de sua parte quanto da parte dos seus leitores, sua descrição adquirirá a força de uma generalização; tal é, muitas vezes, o problema do taxiólogo. Ou você talvez tenha descoberto alguns pássaros cinzen­tos, que se parecem em outros sentidos com os cisnes, mas que co­mem comida diferente e têm uma conformação defeituosa. Você po­derá então generalizar para evitar um equívoco de comportamento. Ou poderá ter uma razão mais teórica para pensar que a generalização vale a pena. Talvez tenha observado, por exemplo, que os membros de outras famílias naturais possuem a mesma coloração. A especifi­cação desse fato de modo que faculte a aplicação de técnicas lógicas poderosas, ao que você sabe, pode permitir-lhe aprender ais a respeito da cor animal em geral ou da reprodução animal.

Ora, tendo feito a generalização, que fará você se encontrar um pássaro preto que de outra forma se parece com um cisne? Quase as mesmas coisas, penso eu, que faria se já não estivesse comprometido com a generalização. Examinará o pássaro com cuidado, externamen­te e talvez internamente também, a fim de encontrar outras caracte­rísticas que distingam esse espécime dos seus paradigmas. O exame será particularmente demorado e completo se você tiver razões teóri­cas para acreditar que a cor caracteriza as famílias naturais ou se o seu ego estiver profundamente envolvido na generalização. É muito provável que o exame revele outras diferenças, e você anunciará a descoberta de uma nova família natural. Ou, não encontrando tais diferenças, poderá anunciar o achado de um cisne preto. A observa­ção, contudo, não pode forçá-lo a essa conclusão falseadora, e você, de vez em quando sairia perdendo se isso acontecesse. Considerações teóricas podem sugerir que a cor basta para demarcar uma família natural: o pássaro não é um cisne porque é preto. Ou você poderá simplesmente adiar a questão enquanto espera a descoberta e o exa­me de outros espécimes. Só se já se tiver comprometido com uma plena definição de “cisne”, uma definição que lhe especifique a aplicabilidade a todo objeto concebível, poderá você ser logicamente forçado a rescindir sua generalização.37 E por que teria oferecido tal definição?” Ela não teria nenhuma função cognitiva e o exporia a tremendos riscos.38 Está visto que, muitas vezes, vale a pena assumir riscos, mas dizer mais do que se sabe, só por amor ao risco, é temeridade.

Tenho para mim que o conhecimento científico, embora logica­mente mais articulado e muito mais complexo, é desse tipo. Os livros e os mestres onde ele se adquire apresentam exemplos concretos a par de uma infinidade de generalizações teóricas. Ambos são veículos essenciais do conhecimento e é, pois, pickwickiano procurar um cri­tério metodológico que suponha o cientista capaz de determinar ante­cipadamente se cada caso imaginável se ajustará à sua teoria ou a falseará. Os critérios de que ele dispõe, explícitos e implícitos, só são suficientes para responder a essa pergunta nos casos que se ajus­tam claramente ou que são claramente irrelevantes. Esses são os casos que ele espera, e para os quais o seu conhecimento foi planeja- do. Defrontando-se com o inesperado, ele deve sempre fazer novas pesquisas a fim de articular melhor a sua teoria na área que acaba de tornar-se problemática. Poderá então rejeitá-la em favor de outra e por uma boa razão. Mas critérios exclusivamente lógicos não odem ditar sozinhos a conclusão que ele deve obter.

IV

Quase tudo o que foi dito até agora são variações sobre um único tema. Os critérios com que os cientistas determinam a validade de uma articulação ou de uma aplicação da teoria existente não bastam por si mesmos a determinar a escolha entre teorias concor­rentes. Sir Karl errou transferindo características escolhidas de pes­quisa cotidiana para os episódios revolucionários ocasionais em que o avanço científico é mais óbvio, ignorando, inteiramente a partir daí, a atividade de todos os dias. Ele procurou, em particular, resol­ver o problema da escolha da teoria durante revoluções pelos critérios lógicos só aplicáveis na íntegra quando a teoria já pode ser pressu­posta. Esta é a maior parte da minha tese neste trabalho e poderia ser toda ela se eu me contentasse em deixar completamente abertas as questões aventadas. Como é que os cientistas procedem à escolha entre teorias concorrentes? Como havemos nós de compreender o modo com que a ciência progride?

Alfred Russel Wallace

Seja-me permitido esclarecer de pronto que, tendo aberto essa caixa de Pandora, não tardarei em fechá-la. Há muita coisa em rela­ção a tais questões que eu não entendo, nem devo fingir que as compreendo. Mas acredito ver as direções em que as respostas devem ser buscadas, e concluirei com uma breve tentativa para mostrar o caminho. Perto do seu fim tornaremos a encontrar um conjunto de expressões características de Sir Karl.

Preciso perguntar primeiro que é o que ainda requer explicação. Não é que os cientistas descobrem a verdade a respeito da natureza, nem que eles se aproximam ainda mais da verdade. A não ser, como sugere um dos meus críticos,39 que definamos simplesmente o enfoque da verdade como o resultado da atividade dos cientistas, não pode­mos reconhecer o progresso na direção dessa meta. Precisamos antes explicar por que a ciência — nosso exemplo mais seguro de conhe­cimento sólido — progride, e precisamos descobrir primeiro como de fato o faz.

Ainda se conhece surpreendentemente pouco sobre a resposta a essa questão descritiva. Ainda se faz necessária grande quantidade de cuidadosa investigação empírica. Com o passar do tempo, as teorias científicas tomadas em grupo tornam-se obviamente mais e mais articu­ladas. Nesse processo, equiparam-se à natureza em um número cada vez maior de pontos e com crescente precisão. Ou o número de temas a que se pode aplicar o enfoque da solução de enigmas cresce cla­ramente com o tempo. Há uma contínua proliferação de especialida­des científicas, em parte pela extensão dos limites da ciência e em parte pela subdivisão dos campos existentes.

Tais generalizações, no entanto, são apenas um princípio. Não sabemos, por exemplo, quase nada sobre o que um grupo de cientis­tas está disposto a sacrificar a fim de lograr os ganhos que uma nova teoria invariavelmente oferece. Minha impressão, embora não seja mais do que isso, é que uma comunidade científica raro ou nunca adotará uma nova teoria a não ser que esta resolva todos ou quase todos os enigmas quantitativos e numéricos que se deparavam à sua predecessora.” Por outro lado, eles sacrificarão o poder expia­natório, embora com relutância, deixando às vezes abertas questões anteriormeente resolvidas e, às vezes, declarando-as inteiramente não­-científicas.41 Voltando-nos para outra área, pouco sabemos acerca das mudanças históricas ocorridas na unidade das ciências. Apesar de êxitos espetaculares, a comunicação através das fronteiras entre espe­cialidades científicas torna-se cada vez pior. Crescerá com o tempo o número de pontos de vista incompatíveis empregados pelo número sempre maior de comunidades de especialistas? A unidade das ciên­cias representa sem dúvida um valor para os cientistas, mas em favor do que serão eles capazes de renunciar a ela? Ou ainda, conquanto o volume do conhecimento científico aumente claramente com o tempo, que diremos da ignorância? Os problemas resolvidos nos últi­mos trinta anos não existiam como questões abertas há um século. Em qualquer época, o saber científico já disponível esgota virtual­mente o que há para saber, só deixando quebra-cabeças visíveis no horizonte do conhecimento existente. Não será possível, nem mesmo provável, que os cientistas contemporâneos saibam menos do que há para saber a respeito do seu mundo do que sabiam a respeito do seu os cientistas do século XVIII? Cumpre lembrar que as teorias científicas só se ligam à natureza aqui e ali. Serão agora talvez os interstícios entre os pontos de ligação maiores e mais numerosos do que no passado?

Albert Einstein

Enquanto não pudermos responder a mais perguntas como essas, não saberemos direito o que é o progresso científico e não podere­mos, portanto, esperar explicá-lo. Por outro lado, pouco faltará para que as respostas a essas perguntas forneçam a explicação desejada. As duas vêm quase juntas. Já devia estar claro que a explicação, na análise final, precisa ser psicológica ou sociológica. Isto é, precisa ser a descrição de um sistema de valores, uma ideologia, juntamente com uma análise das instituições através das quais o sistema é trans­mitido e imposto. Sabendo a que os cientistas dão valor, podemos esperar compreender os problemas pelos quais se responsabilizarão e as escolhas que farão em determinadas circunstâncias de conflito. Duvido que se possa encontrar outra espécie de resposta.

A forma que a resposta assumirá, naturalmente, é outro assunto. Neste ponto termina também minha consciência do controle do meu tema. Mais uma vez, porém, algumas generalizações de amostras ilustrarão os tipos de respostas que se devem procurar. Para um cientista, a solução de um difícil enigma conceptual ou instrumental representa uma meta principal. O seu êxito nessa tentativa é recom­pensado pelo reconhecimento de outros membros do seu grupo pro­fissional e só deles. O mérito prático da solução, na melhor das hipóteses, é um valor secundário, e a aprovação de homens fora do grupo especialista é um valor negativo ou não é nenhum valor. Tais valores, que muito contribuem para ditar a forma da ciência normal, são também às vezes significativos quando é preciso escolher entre teorias. Um homem treinado para solucionar enigmas desejará preservar o maior número possível de soluções já obtidas pelo seu grupo, e desejará também maximizar o número de enigmas passíveis de solução. Mas até esses valores freqüentemente conflitam entre si e outros há que tornam o problema da escolha ainda mais difícil. É exatamente nesse sentido que seria mais significativo um estudo da­quilo a que os cientistas renunciarão. A simplicidade, a precisão e a compatibilidade com as teorias utilizadas em outras especialidades são valores expressivos para os cientistas, mas nem todas ditam a mesma escolha nem serão aplicadas da mesma maneira. Nessas circunstân­cias, importa igualmente que a unanimidade do grupo seja um valor soberano, levando o grupo a minimizar as ocasiões de conflito e a congregar-se rapidamente em torno do mesmo conjunto de regras para a ’solução de enigmas, ainda que para isso lhe seja preciso subdi­vidir a especialidade ou excluir um membro anteriormente produtivo.42

Não estou dizendo que estas são as respostas certas ao proble­ma do progresso científico, mas apenas os tipos de respostas que devem ser procurados. Poderei esperar que Sir Karl me faça com­panhia nesta maneira de ver a tarefa que ainda está por ser feita? Durante algum tempo presumi que ele não o faria, visto que um conjunto de expressões que se repetem em sua obra parece impedi-lo de assumir essa posição. Ele rejeitou reiteradamente “a psicologia do conhecimento” ou o “subjetivo” e insistiu em que o seu interesse se resumia no “objetivo” ou na “lógica do conhecimento”.43 O tí­tulo de sua contribuição mais fundamental para o nosso campo é A Lógica da Descoberta Científica, e é ali que ele afirma da maneira mais positiva que o seu interesse diz muito mais respeito aos estí­mulos lógicos para conhecimento do que aos impulsos psicológicos dos indivíduos. Até há pouco tempo eu supunha que essa maneira de encarar o problema excluiria a solução que tenho advogado.

Alfred Wegener

Mas agora estou menos seguro, pois há outro aspecto da obra de Sir Karl não muito compatível com o que precede. Quando ele rejeita “a psicologia do conhecimento”, o seu interesse explícito é apenas negar a importância metodológica da fonte de inspiração do indivíduo ou da consciência de certeza do indivíduo. Disso não posso discordar. Vai, todavia, uma longa distância entre a rejeição das idiossincrasias do indivíduo e a rejeição dos elementos comuns induzidos pela criação e pela educação na composição psicológica da situação de membro licenciado de um grupo científico. A dispensa de um não impõe a do outro. E isso também Sir Karl parece reco­nhecer às vezes. Embora insista em que está escrevendo sobre a ló­gica do conhecimento, um papel essencial em sua metodologia é desempenhado por trechos que só posso interpretar como tentativas de inculcar imperativos morais aos membros do grupo científico.

“Presumamos”, escreve Sir Karl, “que nos impusemos delibe­radamente a tarefa de viver neste nosso mundo desconhecido; ajustar- nos a ele da melhor maneira que pudermos;. . e explicá-lo, se possível (não precisamos presumir que o seja) e até onde for possí­vel, com a ajuda de leis e teorias explanatórias. Se nos impusermos essa tarefa, não existe processo mais racional que o método da… conjetura e da refutação: de ousadamente propor teorias; de envidar nossos melhores esforços para mostrar que estas são errôneas; e de aceitá-las como tentativas se nossos esforços críticos forem malsuce­didos.”44 Entendo que não devemos compreender o êxito da ciên­cia sem compreender toda a força de imperativos como estes, reto- ricamente induzidos e profissionalmente partilhados. Ainda mais ins­titucionalizados e articulados (e também um tanto diversamente) tais máximas e valores talvez expliquem o resultado de escolhas que não poderiam ter sido ditas só pela lógica e pela experiência. O fato de passagens como estas ocuparem um lugar proeminente nos escritos de Sir Karl é, portanto, mais uma prova da semelhança dos nossos pontos de vista. E o fato de continuar ele, no meu entender, sem os ver como os imperativos sociopsicológicos que são é mais uma prova da existência da mudança de gestalt que ainda nos divide profundamente.

REFERÊNCIAS

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Popper [1963]: Conjectures and Refutations, 1963.

Stahlman [1956]: “Astrology in Colonial America: An Extended Query”, Willian and Mary Quarterly, 13, pp. 551-63.

Thorndike [1923-58]: A History of Magic and Experimental Science, 8 vol 1923-58.

Thorndike [1955]: “The True Place of Astrology in the History of Science Isis, 46, pp. 273-8.

Notas


1. Este ensaio foi inicialmente preparado a convite de P. A. Schilpp para seu volume prestes a sair The Philosophy of Karl R. Popper (A Filosofia de Karl R. Popper), que será publicado por The Open Court Publishing Company, La Salle, III., em The Library of Living Philosophers (A Biblioteca dos Filósofos Vivos). Confesso-me profundamente grato ao Professor Schilpp e aos editores pela autorização que me concederam para imprimi-lo como parte das atas deste simpósio antes de aparecer no volume para o qual foi primeiro solicitado.

2. Para preparar este trabalho, reli de Sir Karl Popper Logic of Scientific Discovery, Conjectures and Refutations e The Poverty of Historicism. Também fiz referências ocasionais à sua Logik der Forschung e a The Open Society and its Enemíes. Minha The Structure of Scientific Revolutions proporciona um relato mais extenso de muitas questões adiante discutidas.


3. Uma simples coincidência não pode ser responsável por essa extensa superposição. Conquanto eu não tivesse lido nenhuma obra de Sir Karl antes do aparecimento, em 1959, da sua Logik der Forschung (ocasião em que meu livro estava no rascunho), ouvi discutido repetidamente certo número de suas idéias principais. Ouvi-o, sobretudo, discutir algumas delas como “Conferencista William James” em Harvard na primavera de 1950. Tais circunstâncias não me permitem especificar uma dívida intelectual para com Sir Karl, mas deve haver uma.

4. Utilizei alhures o termo “paradigma” em lugar de “teoria” para deno­tar o que é rejeitado e substituído durante as revoluções científicas. Algumas razões para a mudança do termo surgirão mais adiante.

5. O realce dado a uma área adicional de concordância a cujo respeito tem havido muitos mal-entendidos pode por ainda mais em foco o que, no meu entender, constitui as verdadeiras diferenças entre os pontos de vista de Sir Karl e os meus. Ambos insistimos em que a fidelidade a uma tradição desempenha papel essencial no desenvolvimento científico. Ele escreveu, por exemplo, “Quantitativa e qualitativamente a fonte mais importante do nosso conhecimento — tirando o conhecimento inato — é a tradição” (Popper, Con­jectures and Refutations, p. 27). De maneira ainda mais pertinente, já em 1948, escrevia: “Não me parece que poderemos, algum dia, libertar-nos de todos os laços da tradição. A chamada libertação, na realidade, é apenas a mudança de uma tradição para outra” (Conjectures and Refutations, 1963, p. 122).


6. Popper, Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 27.

7. Sobre uma extensa discussão da ciência normal, a atividade para cujo exercício os profissionais são treinados, veja minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 23-24 e 135-42. É importante notar que, quando descrevo o cientista como um solucionador de enigmas e Sir Karl o descreve como um solucionador de problemas (por exemplo em seu Conjectures and Refutations, pp. 67, 222), a similaridade de nossos termos disfarça uma divergência funda­mental. Escreve Sir Karl (os grifos são meus), “Não há dúvida de que nossas expectativas e, portanto, nossas teorias, podem até preceder, historicamente, nossos problemas. Entretanto a ciência só começa com problemas. Os proble­mas afloram sobretudo quando estamos decepcionados em nossas expectativas, ou quando nossas teorias nos envolvem em dificuldades, em contradições.” Emprego o termo “enigma” no intuito de enfatizar que as dificuldades que de ordinário são enfrentadas até pelos melhores cientistas são, como enigmas de palavras cruzadas ou charadas de xadrez, desafios apenas ao seu engenho. E ele quem está em dificuldade, não a teoria vigente. Meu ponto de vista é quase oposto ao de Sir Karl.

8. Cf. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 129, 215 e 221, sobre enunciados particularmente vigorosos dessa posição.

9. Por exemplo, Popper, Conjectures and Refutations, p. 220.

10. Sobre a obra acerca da oxidação, veja Guerlac, Lavoisier — The Crucial Year, 1966. Sobre os antecedentes das experiências relativas à paridade veja-se Hafner e Presswood, “Strong Interference and Weak Interactions”, 1965.

11. O argumento é desenvolvido de maneira circunstanciada em minha The Structure of Scientific Revolutions, 1962, pp. 52-97.

12. Popper, Conjectures and Refutations, capítulo 5, especialmente pp. 148-52.

13. Conquanto eu não estivesse então procurando um critério de demar­cação, são exatamente esses os pontos desenvolvidos em minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 10-22 e 87-90.

14. Cf. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 192-200, com minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 143-58.

15. Popper, Conjectures and Refutations, p. 34.

16 O índice do livro de Popper Conjectures and Refutations tem seis verbetes cujo título é “a astrologia como pseudociência típica”.

17. Popper, Conjectures and Refutations, p. 37.

18. Sobre exemplos, veja Thorndike, A History of Magic and Experimental Science, 5, pp. 225 e seguintes; 6, pp. 71, 101, 114.

19. Sobre reiteradas explicações de malogro, veja, ibid., 1, pp. 11 e 514; 4, 368; 5, 279.

20. Um apanhado inteligente de algumas das razões por que a astrologia perdeu sua plausibilidade está incluído no ensaio de Stahlman, “Astrology in Colonial America: An Extended Query”. Já no estudo de Thorndike, “The True Place of Astrology in the History of Science”, o leitor encontrará uma explicação do fascínio exercido anteriormente pela, astrologia.

21. Cf. minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 66-76.

22. Essa formulação dá a entender que o critério de demarcação de Sir Karl pode ser salvo enunciando-o de uma forma ligeiramente diferente, inteira­mente de acordo com sua intenção aparente. Para que um campo seja uma ciência suas conclusões precisam ser logicamente deriváveis de premissas partilhadas. Sob esse aspecto há que excluir a astrologia, não porque suas previsões não sejam testáveis, mas porque só as previsões mais gerais e menos testáveis podiam ser derivadas da teoria aceita. Visto que qualquer campo capaz de satisfazer a essa condição pode suportar uma tradição de soluciona- mento de enigmas, a sugestão é claramente proveitosa. Está bem próxima de fornecer uma condição suficiente para que um campo seja uma ciência. Mas nesta forma, pelo menos, não é sequer uma condição suficiente e por certo não é uma condição necessária. Ela admitiria, por exemplo, a agrimensura e a navegação como ciências e excluiria a taxonomia, a geologia histórica e a teoria da evolução. As conclusões de uma ciência podem ser precisas e cogentes ao mesmo tempo, sem ser plenamente deriváveis, pela lógica, de premissas aceitas. Cf. minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 35-51, e também a discussão na Seção III, mais adiante.

23. Isto não quer dizer que os astrólogos não se criticavam uns aos outros. Ao contrário, como praticantes de filosofia e de algumas ciências so­ciais, pertenciam a uma variedade de escolas diferentes, e a luta entre as escolas, às vezes, era acirrada. Mas esses debates, de ordinário, giravam em tor­no da Implausibilidade da teoria adotada por uma ou por outra escola. Os malogros de predições individuais desempenhavam um papel muito pequeno. Compare-se A History of Magic and Experimental Science de Thorndike, 5, p. 233.


24. Cf. Conjectures and Refutations, de Popper, p. 246.

25. Cf. minha The Structure o/ Scientific Revolutions, pp. 77-87.

26. A citação é do livro Conjectures and Refutations, de Popper, p. vii, num prefácio datado de 1962. Anteriormente, Sir Karl equiparara “aprender com nossos erros a “aprender por ensaio-e-erro” (Conjectures and Refutations, p. 216), e a formulação de ensaio-e-erro data, pelo menos, de 1937 (Conjectures and Refutations, p. 312) e é, em espírito, mais velho do que isso. Muita coisa dita mais adiante sobre a noção de “equivoco” de Sir Karl aplica-se igualmente ao seu conceito de “erro”.


27. Conjectures and Refutations, de Popper, pp. 215 e 220. Nessas pá­ginas Sir Karl esboça e ilustra sua tese de que a ciência se desenvolve através de revoluções. Ao fazê-lo, nunca justapõe o termo ” erro ” ao nome de uma teoria científica superada, presumivelmente porque o seu sólido instinto histó­rico não lhe permite incorrer num anacronismo tão grosseiro. Não obstante, o anacronismo é fundamental para a retórica de Sir Karl, que reiteradamente fornece pistas conducentes a diferenças mais substanciais entre nós. A menos que as teorias superadas sejam erros, não há maneira de reconciliar, digamos, o parágrafo inicial do prefácio de Sir Karl para o livro Conjectures and Refu­tations, p. vii, “aprender com nossos erros”, “nossas tentativas freqüente­mente equivocadas de resolver nossos problemas”, “testes que podem ajudar- nos na descoberta de nossos erros”, com a opinião (Conjectures and Refuta­tions, p. 215) de que “o crescimento do conhecimento cientifico . . [consiste na] repetida derrubada de teorias científicas e sua substituição por teorias melhores e mais satisfatórias”.


28. “Proofs and Refutations”, de Lakatos.

29. Logic of Scientific Discovery, de Popper, p. 50.

30. Se bem que o meu ponto seja um pouco diferente, devo meu reco­nhecimento da necessidade de enfrentar essa questão às críticas dirigidas por C. G. Hempel aos que interpretam erroneamente Sir Karl atribuindo-lhe uma crença no falseamento absoluto em lugar de uma crença no falseamento relativo. Veja os seus Aspects of Scientific Explanation, p. 45. Reconheço-me também devedor do Professor Hempel por sua crítica atenta e inteligente deste ensaio quando ainda não passava de um rascunho.

31. Popper, Logic of Scientific Discovery, p. 31.

32. Popper, ibidem, pp. 53 e seguintes.

33. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 233-5. Note-se também, no pé da última dessas páginas, que a comparação de Sir Karl da relativa veros­similhança de duas teorias depende do fato de “não haver mudanças revolucioná­rias em nosso conhecimento básico”, suposição que ele não desenvolve em parte alguma e que é difícil de harmonizar com a sua concepção da mudança científica mediante revoluções.

34. Braithwaite, Scientific Explanation, pp. 50-87, especialmente p. 76, e minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 97-101.

35. Note-se que a semelhança entre os membros de uma família natural é aqui uma relação aprendida e uma relação que pode ser desaprendida. Pon­dere-se o antigo provérbio: “Para um ocidental, todos os chineses são parecidos.” Esse exemplo também põe em destaque a mais drástica das simplificações intro­duzidas neste ponto. Uma discussão mais completa teria de tomar em conside­ração hierarquias de famílias naturais com relações de semelhança entre famí­lias nos níveis mais elevados.

36. Essa experiência não exige o abandono da categoria “cisnes” nem o abandono da categoria “gansos”, mas exige a introdução de um limite arbitrário entre elas. As famílias “cisnes” e “gansos” deixariam de ser famílias naturais, e não se poderia concluir coisa alguma acerca do caráter de um novo pássaro semelhante a um cisne que também não fosse verdadeiro em relação aos gan­sos. O espaço perceptual vazio é essencial para que a qualidade de membro da família tenha conteúdo cognitivo.

37. . Novas provas da desnaturalidade de uma definição dessa natureza são fornecidas pela pergunta seguinte. Deve incluir-se a “brancura” entre as características que definem os cisnes? Em caso afirmativo, a generalização “Todos os cisnes são brancos” será imune à experiência Mas se se excluir a “brancura” da definição, será preciso incluir outra característica qualquer capaz de substituir a “brancura”. As decisões a respeito das características que fazem parte de uma definição e estarão disponíveis para o enunciado de leis gerais são amiúde arbitrárias e, na prática, raramente se fazem. O conheci­mento, em regra geral; não se articula dessa maneira.

38. . Essa incompletude das definições é muitas vezes denominada “textu­ra aberta” ou “vagueza de significado”, mas tais expressões parecem decidi­damente enviesadas. As definições talvez sejam incompletas, mas não há nada de errado com os significados. É dessa maneira que se comportam os signi­ficados!

39. Hawkins, crítica da “The Structure of Scientific Revolutions”, de Kuhn.

40. Cf. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, pp. 102-8.

41. Cf. Kuhn, “The Function of Measurement in Modern Physical Science”.

42. Cf. The Structure of Scientific Revolutions, de minha autoria, pp.161-9.

43. Popper, Logic of Scientific Discovery, pp. 22 e 31 e seguintes, 46; e Conjectures and Refutations, p. 52.

44. Popper, Conjectures and Refutations, p. 51. O grifo está no original."
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sexta-feira, 6 de março de 2009

Sumário - Busca Rápida


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- Araruama - "Hidráulica e sedimentação do Canal de Itajuru – Lagoa de Araruama." - por Lessa (1990)
- Ciência Normal - "A Ciência Normal e seus Perigos". por Karl Popper
- Cecília Meirelles
- Epistemologia - O que é Epistemologia?
- Florbela Espanca
- Geoarqueologia – O que é Geoarqueologia
- Heracleitos – Do Ser e do Estar - por Rubens Antonio
- Hidra de Lerna - “Prehistoric Coastal Environments in Greece: The Vanished Landscapes of Dimini Bay and Lake Lerna.” - por Zanger, 1991.
- Karl Popper e Thomas Kuhn: reflexões... por Francisco Ramos Neves
- “Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?”, por Thomas Kuhn
- Mendel - "A História das Leis de Mendel na Perspectiva Fleckiana." - por Leite, Ferrari e Delizoicov, 2001.
- Nietzsche e o Nazismo - Nas asas da Mentira - por Rubens Antonio
- O Passo das Termópilas – por Kraft, Rapp Jr, Szemler, Tziavos, Kase (1987)
- Safo – Filha Imortal de Afrodite - por Rubens Antonio
- Um discurso
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“A Ciência Normal e seus Perigos.” por Karl Popper


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POPPER, Karl. “A Crítica do Desenvolvimento do Conhecimento.” São Paulo (São Paulo): Editora Cultrix, tradução de Octávio Mendes Cajado, 1979 - Extraído das Atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência. Londres (Inglaterra): 1965. Trazido de: www.consciencia.org/a-ciencia-normal-e-seus-perigos-karl-popper
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“A crítica do Professor Kuhn às minhas opiniões sobre ciência é a mais interessante que já encontrei até agora. Há, reconhecidamente, alguns pontos, mais ou menos importantes, em que ele não me entende ou me interpreta mal. Kuhn, por exemplo, cita com desaprovação um trecho do início do primeiro capítulo do meu livro, “A Lógica da Descoberta Científica”. Pois eu gostaria de citar uma passagem que ele deixou passar, constante do Prefácio da Primeira Edição. (Na primeira edição a passagem em apreço vinha logo antes do trecho citado por Kuhn; mais tarde inseri o Prefácio da Edição Inglesa entre as duas passagens.) Ao passo que breve trecho citado por Kuhn poderá soar, fora do contexto, como se eu não estivesse a par do fato, destacado por ele, de que os cientistas desenvolvem necessariamente suas idéias dentro de uma estrutura teórica definida, seu imediato predecessor de 1934 soa quase como uma antecipação desse ponto central da opinião de Kuhn.
Depois de duas epígrafes tiradas de Schlick e de Kant, meu livro começa com as seguintes palavras: "Um cientista empenhado numa pesquisa, digamos no campo da física, pode atacar diretamente o seu problema. Pode ir logo ao âmago do assunto: isto é, ao coração de uma estrutura organizada. Pois já existe uma estrutura de doutrinas científicas; e, com ela, uma situação — problema geralmente aceito. É por isso que ele pode deixar para outros o ajuste de sua contribuição à estrutura do conhecimento científico." E, a seguir, prossigo dizendo que o filósofo se encontra em posição diferente.
Agora parece muito claro que a passagem citada descreve a situação "normal" do cientista de modo muito semelhante a Kuhn: há um edifício, uma estrutura organizada da ciência que fornece ao cientista uma situação — problema geralmente aceito a que o seu próprio trabalho pode ajustar-se. Isso se parece muito com um dos pontos principais de Kuhn: a saber, que a ciência "normal", como ele a chama, ou o trabalho "normal" do cientista, pressupõe uma estrutura organizada de suposições, ou uma teoria, ou um programa de pesquisas, necessário à comunidade de cientistas a fim de poderem discutir racionalmente o seu trabalho.
O fato de haver Kuhn passado por alto esse ponto de concordância e de haver-se aferrado ao que vinha imediatamente depois, e que ele supunha fosse um ponto de discordância me parece significa­tivo. Mostra que só lemos e compreendemos um livro com expectativas definidas em nossa mente. Isso, de fato, pode ser considerado uma das conseqüências de minha tese de que abordamos tudo à luz de uma teoria preconcebida. Assim também um livro. Em conseqüência disso, estamos sujeitos a escolher as coisas de que gostamos ou desgostamos ou que desejamos, por outros motivos, encontrar no livro; e assim fez Kuhn ao ler o meu livro.
Entretanto, apesar desses pontos secundários, Kuhn me com­preende muito bem — melhor, creio eu, do que a maioria dos críticos que conheço; e suas duas críticas principais são muito importantes.
A primeira dessas críticas sustenta, em poucas palavras, que passei totalmente por alto o que ele denomina ciência "normal", e me empenhei exclusivamente em descrever o que ele denomina "pesquisa extraordinária" ou "ciência extraordinária".
Creio que a distinção entre as duas espécies de atividades talvez não seja tão nítida quanto o quer Kuhn; entretanto, estou pronto pa­ra admitir que, na melhor das hipóteses, não tive mais que uma obs­cura consciência dessa distinção; e o que é mais, que a distinção aponta para algo de suma importância.
Nessas circunstâncias, é relativamente secundário serem ou não os termos de Kuhn, ciência "normal" e ciência "extraordinária", até certo ponto petições de princípio e (no sentido de Kuhn) "ideológicos". Creio que são tudo isso; o que, porém, não diminui meus sen­timentos de gratidão a Kuhn por haver assinalado a distinção e por haver assim aberto meus olhos para uma série de problemas que eu ainda não tinha visto com clareza.
A ciência "normal", no sentido de Kuhn, existe. É a atividade do profissional não-revolucionário, ou melhor, não muito crítico: do estudioso da ciência que aceita o dogma dominante do dia; que não deseja contestá-lo; e que só aceita uma nova teoria revolucioná­ria quando quase toda a gente está pronta para aceitá-la — quando ela passa a estar na moda, como uma candidatura antecipadamente vitoriosa a que todos, ou quase todos, aderem. Resistir a uma nova moda exige talvez tanta coragem quanto criar uma.
Vocês talvez digam que, ao descrever dessa maneira a ciência "normal" de Kuhn, eu o estou criticando implícita e sub-repticiamen­te. Afiançarei, portanto, mais uma vez, que o que Kuhn escreveu existe, e precisa ser levado em consideração pelos historiadores da ciência. O fato de tratar-se de um fenômeno de que não gosto (porque o considero perigoso para a ciência), ao passo que Kuhn, aparentemente, não desgosta dele (porque o considera "normal") é outro assunto; assunto, aliás, muitíssimo importante.
A meu ver, o cientista "normal", tal como Kuhn o descreve, é uma pessoa da qual devemos ter pena. (Consoante as opiniões de Kuhn acerca da história da ciência, muitos grandes cientistas devem ter sido "normais"; entretanto, como não tenho pena deles, não creio que as opiniões de Kuhn estejam muito certas.) O cientista "normal", a meu juízo, foi mal ensinado. Acredito, e muita gente acredita como eu, que todo o ensino de nível universitário (e se pos­sível de nível inferior) devia consistir em educar e estimular o aluno a utilizar o pensamento crítico. O cientista "normal", descrito por Kuhn, foi mal ensinado. Foi ensinado com espírito dogmático: é uma vítima da doutrinação. Aprendeu uma técnica que se pode aplicar sem que seja preciso perguntar a razão pela qual pode ser aplicada (sobretudo na mecânica quântica). Em conseqüência disso, tornou- se o que pode ser chamado cientista aplicado, em contraposição ao que eu chamaria cientista puro. Para usarmos a expressão de Kuhn, ele se contenta em resolver "enigmas"1. A escolha desse termo parece indicar que Kuhn deseja destacar que não é um problema real­mente fundamental o que o cientista "normal" está preparado para enfrentar: é, antes, um problema de rotina, um problema de apli­cação do que se aprendeu; Kuhn o descreve como um problema em que se aplica a teoria dominante (a que ele dá o nome de "paradigma"). O êxito do cientista "normal" consiste tão-só em mostrar que a teoria dominante pode ser apropriada e satisfatoriamente aplicada na obtenção de uma solução para o enigma em questão.
A descrição do cientista "normal" feita por Kuhn lembra-me claramente uma conversa que tive com meu falecido amigo, Philipp Frank, por volta de 1933. Nessa ocasião Frank se queixava amarga- mente do enfoque da ciência sem espírito crítico característico da maioria dos estudantes de engenharia. Eles queriam simplesmente "conhecer os fatos". Rejeitavam as teorias ou hipóteses problemáticas, que não fossem "geralmente aceitas": elas intranqüilizavam os estudantes, que só queriam conhecer as coisas, os fatos, que pudessem aplicar em sã consciência e sem análises introspectivas.
Admito que esse tipo de atitude existe; e existe não só entre engenheiros, mas também entre pessoas educadas como cientistas. Só posso dizer que vejo um grande perigo nisso e na possibilidade que tem de tornar-se normal (assim como vejo um grande perigo no aumento da especialização, outro fato histórico inegável): um perigo para a ciência e, na verdade, para nossa civilização. O que mostra por que considero tão importante a ênfase dada por Kuhn à existência desse tipo de ciência.
Acredito, porém, que Kuhn se equivoca quando sugere que é normal o que ele chama de ciência "normal".
Claro está que eu nem sonharia brigar por causa de um termo. Mas gostaria de sugerir que poucos cientistas lembrados pela história da ciência foram "normais" no sentido de Kuhn, se é que houve algum que o fosse. Em outras palavras, discordo de Kuhn não só no tocante a certos fatos históricos, mas também no tocante ao que é característico da ciência.
Tome-se por exemplo Charles Darwin antes da publicação de “A Origem das Espécies”. Mesmo depois dessa publicação ele foi o que se poderia descrever como um "revolucionário relutante", para usarmos a bela descrição de Max Planck feita pelo Professor Pearce Williams; antes dela, Darwin não tinha nada de revolucionário. Nada se assemelha a uma atitude revolucionária consciente em sua descrição de “A Viagem do Beagle”. Mas ela está cheia de problemas; problemas autênticos, novos e fundamentais, e engenhosas conjeturas — conjeturas que competem freqüentemente umas com as outras — a respeito de possíveis soluções.
Dificilmente haverá uma ciência menos revolucionária do que a botânica descritiva. Não obstante, o botânico descritivo enfrenta constantemente problemas autênticos e interessantes: problemas de distribuição, problemas de localizações características, problemas de diferenciação de espécies ou subespécies, problemas como os da sim- biose, inimigos característicos, doenças características, variedades resistentes, variedades mais ou menos férteis, e assim por diante. Muitos problemas descritivos obrigam o botânico a empregar um enfoque experimental; e isso leva à fisiologia das plantas e, assim, a uma ciência teórica e experimental (em lugar de uma ciência puramente "descritiva"). As várias fases dessas transições fundem-se de modo quase imperceptível e surgem em cada fase problemas autênticos em lugar de "enigmas".
Mas talvez Kuhn chame "enigma" ao que eu chamaria "problema"; e o fato é que não queremos brigar por causa de palavras. Seja-me, portanto, permitido dizer alguma coisa mais geral a respeito da tipologia dos cientistas de Kuhn.
Afirmo que entre o "cientista normal" de Kuhn e o seu "cientista extraordinário" há muitas gradações; e é preciso que haja. Tome-se Boltzmann, por exemplo; haverá poucos cientistas maiores do que ele. Dificilmente, porém, se poderá dizer que sua grandeza consiste em haver ele preparado uma revolução importante porque era, em extensão considerável, um seguidor de Maxwell. Mas estava tão longe de ser um "cientista normal" quanto se pode estar; lutador corajoso, resistiu à moda imperante em seu tempo — moda que, a propósito, só imperou no continente e teve poucos seguidores, naquela época, na Inglaterra.
Acredito que a idéia de Kuhn de uma tipologia dos cientistas e dos períodos científicos é importante, mas necessita de restrições. O seu esquema de períodos "normais", dominados por uma teoria imperante (um "paradigma", segundo a terminologia de Kuhn) e segui- dos de revoluções excepcionais, parece ajustar-se muito bem à astronomia. Mas não se ajusta, por exemplo, à evolução da teoria da matéria; nem à evolução da teoria das ciências biológicas desde, digamos, Darwin e Pasteur. Em relação ao problema da matéria, sobretudo, tivemos pelo menos três teorias dominantes que competiram desde a Antigüidade: as teorias da continuidade, as teorias atômicas e as teorias que tentavam combinar as duas primeiras. Além disso, tivemos por algum tempo a versão de Berkeley feita por Mach — a teoria de que a "matéria" era um conceito mais metafísico do que científico: de que não havia nada parecido com uma teoria física da estrutura da matéria; e de que a teoria fenomenológica do calor deveria tornar-se o paradigma por excelência de todas as teorias físicas. (Emprego aqui a palavra "paradigma" num sentido um pouco diferente do que lhe dá Kuhn: não para indicar uma teoria dominante, mas um programa de pesquisa - um modo de explicação considerado tão satisfatório por alguns cientistas que eles exigem a sua aceitação geral.)
Conquanto eu considere importantíssimo o descobrimento de Kuhn do que ele chama de ciência "normal", não concordo com a afirmativa de que a história da ciência lhe apóia a doutrina (essencial à sua teoria da comunicação racional) segundo a qual "normalmente" temos uma teoria dominante — um paradigma — em cada domínio científico, e ainda segundo a qual a história de uma ciência consiste numa seqüência de teorias dominantes, com períodos revo­lucionários intervenientes de ciência "extraordinária"; períodos que ele descreve como se a comunicação entre cientistas se houvesse in­terrompido mercê da ausência de uma teoria dominante.
Essa imagem da história da ciência conflita com os fatos tais como os vejo. Pois sempre houve, desde a Antigüidade, constante e proveitosa discussão entre as teorias dominantes concorrentes da matéria.
Agora, em seu atual ensaio, Kuhn parece propor a tese de que a lógica da ciência tem pouco interesse e nenhum poder explanatório para o historiador da ciência.
Afigura-se-me que, vinda de Kuhn, essa tese é quase tão para­doxal quanto o foi a tese "Eu não uso hipóteses" exposta na “Optics” de Newton. Pois assim como Newton usava hipóteses, assim Kuhn usa a lógica — não só para argumentar, mas também no mesmíssimo sentido em que me refiro à Lógica da Descoberta. Ele emprega, todavia, uma lógica da descoberta que, em certos pontos, difere radi­calmente da minha a lógica de Kuhn é a lógica do relativismo histórico.
Permitam-me mencionar primeiro alguns pontos de concordân­cia. Acredito que a ciência é essencialmente crítica; que consiste em conjeturas audazes e, portanto, pode ser descrita como revolucionária. Sempre acentuei, todavia, a necessidade de algum dogmatismo: o cientista dogmático tem um papel importante para representar. Se nos sujeitarmos à crítica com demasiada facilidade, nunca descobriremos onde está a verdadeira força das nossas teorias.
Mas Kuhn não quer saber desse dogmatismo. Acredita no domínio de um dogma imperante por períodos consideráveis; e não acredita que o método da ciência seja, normalmente, o método de conjeturas audazes e de crítica.
Quais são os seus principais argumentos? Não são psicológicos nem históricos — são lógicos: Kuhn sugere que a racionalidade da ciência pressupõe a aceitação de uma referencial comum. Sugere que a racionalidade depende de algo como uma linguagem comum e um conjunto comum de suposições. Sugere que a discussão racional e a crítica racional só serão possíveis se estivermos de acordo sobre questões fundamentais.
Essa é uma tese amplamente aceita e, com efeito, está na moda: a tese do relativismo. E é uma tese lógica.
Considero-a equivocada. Admito, naturalmente, que é muito mais fácil discutir enigmas dentro de um referencial comum aceito e ser levado pela maré de uma nova moda imperante a um novo referencial, do que discutir princípios fundamentais — isto é, o próprio re­ferencial de nossas suposições. Mas a tese relativista de que a estru­tura não pode ser discutida criticamente pode ser discutida critica­mente e não resiste à crítica.
Dei-lhe o nome de O Mito do Referencial, e discuti-a em várias ocasiões. Considero-a um equívoco lógico e filosófico. (Lembro-me de que Kuhn não gosta do meu emprego da palavra "equívoco"; mas essa aversão é simplesmente parte do seu relativismo.)
Eu gostaria de dizer em poucas palavras por que não sou relativista: 2 acredito na verdade "absoluta" ou "objetiva", no sentido de Tarski (embora, naturalmente, não seja um "absolutista", pois não penso que eu, nem qualquer outra pessoa, temos a verdade no bolso). Não duvido de que este seja um dos pontos em que estamos mais profundamente divididos; e é um ponto lógico.
Admito que a qualquer momento somos prisioneiros apanhados no referencial das nossas teorias; das nossas expectativas; das nossas experiências passadas; da nossa linguagem. Mas somos prisioneiros num sentido pickwickiano; se o tentarmos, poderemos sair de nosso referencial a qualquer momento. É verdade que tornaremos a en­contrar-nos em outro referencial, mas este será melhor e mais espa­çoso; e poderemos, a quaisquer momento, deixá-lo também.
O ponto central é que é sempre possível uma discussão crítica e uma comparação dos vários referenciais. Não passa de um dogma — e um dogma perigoso — o que estatui que os diversos referenciais são como linguagens mutuamente intraduzíveis. O fato é que nem línguas totalmente diferentes (como o inglês e o hopi, ou o chinês) são intraduzíveis, e que existem inúmeros índios ou chineses que aprenderam a dominar perfeitamente o inglês.
O Mito do Referencial, em nosso tempo, é o baluarte central do irracionalismo. A tese que lhe oponho é que ele simplesmente exagera a dificuldade, transformando-a numa impossibilidade. Não se pode deixar de admitir a dificuldade da discussão entre pessoas educadas situadas em diferentes referências. Mas nada é mais proveitoso que uma discussão dessa natureza; do que o embate cultural que estimulou algumas das maiores revoluções intelectuais.
Admito que uma revolução intelectual se assemelha com freqüência a uma conversão religiosa. Uma nova visão das coisas pode apanhar-nos como o fuzilar de um raio. Mas isso não quer dizer que não podemos avaliar, crítica e racionalmente, nossos pontos de vista anteriores à luz dos novos.
Seria, desse modo, simplesmente falso dizer que a transição da teoria da gravidade de Newton para a de Einstein é um salto irracional e que as duas não são racionalmente comparáveis. Existem, ao contrário, inúmeros pontos de contato (tais como o papel da equação de Poisson) e pontos de comparação: segue-se da teoria de Einstein que a teoria de Newton é uma excelente aproximação (a não ser no que concerne aos planetas e cometas que se movem em órbitas elípticas com excentricidades consideráveis).
Nessas condições, em ciência, à diferença do que acontece na teologia, é sempre possível o confronto crítico das teorias concorrentes, dos referenciais que competem entre si. E a negação dessa possibilidade representa um equívoco. Na ciência (e só na ciência) podemos dizer que fizemos progressos genuínos e que sabemos mais agora do que sabíamos antes.
Assim sendo, a diferença entre mim e Kuhn remonta, de maneira fundamental, à lógica. E o mesmo acontece com toda a teoria de Kuhn. À sua proposta: "A Psicologia em lugar da Lógica da Descoberta" podemos responder: todos os seus argumentos advêm da tese de que o cientista é logicamente obrigado a aceitar um referencial, visto que nenhuma discussão racional é possível entre referenciais. Eis aí uma tese lógica — mesmo que seja uma tese equivocada.
De fato, como já expliquei alhures, o "conhecimento científico" pode ser considerado como destituído de objeto.3 Pode ser encarado como um sistema de teorias do qual trabalhamos como trabalham os pedreiros numa catedral. A meta é descobrir teorias que, à luz da discussão crítica, cheguem mais perto da verdade. Desse modo, a meta é o aumento do conteúdo de verdade das nossas teorias (o que, como já demonstrei 4, só pode ser conseguido pelo aumento do seu conteúdo).
Não posso concluir sem assinalar que, no meu entender, é surpreendente e decepcionante a idéia de recorrer à sociologia ou à psicologia (ou ainda, como Pearce Williams recomenda, à história da ciência) a fim de informar-se a respeito das metas da ciência e do seu progresso possível.
De fato, cotejadas com a física, a sociologia e a psicologia estão cheias de modas e dogmas não-controlados. A sugestão de que podemos encontrar aqui algo parecido com uma "descrição pura, objetiva" está claramente equivocada. Além disso, como pode o retrocesso a tais ciências, a miúdo espúrias, ajudar-nos a resolver essa dificuldade? Não será sociológica (nem psicológica, ou histórica) a ciência a que vocês desejam recorrer a fim de decidir quanto monta a pergunta "Que é ciência?" ou "Que é, de fato, normal em ciência?" Pois vocês, evidentemente, não querem recorrer à orla lunática sociológica (ou psicológica ou histórica)? E a quem desejam consultar: ao sociólogo (ou psicólogo, ou historiador) "normal" ou ao "extraordinário"?
Por isso considero tão surpreendente a idéia de recorrer à sociologia ou à psicologia. E considero-a tão decepcionante porque ela mostra que foi baldado tudo o que eu disse até agora contra as tendências e processos sociologistas e psicologistas, especialmente na história.
Não, esta não é a maneira, como a simples lógica pode mostrar; e assim a resposta à pergunta de Kuhn "Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?" é a seguinte: enquanto que a Lógica da Descoberta tem muito pouca coisa para aprender com a Psicologia da Pesquisa, esta tem muito que aprender com aquela.
Notas
1. Não sei se o emprego do termo "enigma" por parte de Kuhn tem alguma coisa que ver com o emprego de Wittgenstein. Wittgenstein, natural­mente, empregou-o em conexão com sua tese de que não há problemas genuínos em filosofia — apenas enigmas, isto é, pseudoproblemas ligados ao uso im­próprio da linguagem. Seja como for, o emprego do termo "enigma" em lugar de "problema" indica, por certo, um desejo de mostrar que os problemas assim descritos não são muito sérios nem muito profundos.
2. Veja, por exemplo, o Capítulo 10 das minhas Conjectures and Refu­tations, e o primeiro Addendum à 4.' (1962) e à última edição do volume de minha Open Society.
3. Veja agora minha palestra intitulada "Epistemology Without a Knowing Subject" estampada nas Atas do 'Terceiro Congresso Internacional de Lógica, Metodologia e Filosofia da Ciência, que se realizou em Amsterdã. no ano de 1%7.
4. Veja meu estudo intitulado "A Theorem on Truth-Content", publicado na obra Mind, Matter, and Method, de Feigl Festschrift, organizado por P. K. Feyerabend e Grover Maxwell, em 1966.
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